terça-feira, 23 de março de 2010

a mesma fábula...de outro jeito...


Era uma vez uma formiga que todo o santo dia carreava fardos e fardos de comida para abastecer o formigueiro. Quando chegava a noite, a pobre formiga exploradora, moidinha de trabalho, já nem alento sentia para uma amena cavaqueira com familiares e amigos. Adormecia logo.
O seu natural bom-feitio, e só isso, impedira-a de azedar o bom relacionamento com os outros. Mas não era feliz, e isso pressentia-se nos gestos bruscos e evasivos e naquela ruga de preocupação que tanto a marcava. No entanto, tinha reservas, bem escusadas, sobre o modo de ser e de viver de outras criaturas. Não sendo nada feia, desleixava muito os cuidados consigo e, apesar de ser esbelta e delicada na cintura - resultado de um exercício diário e continuado -, além de outros predicados que se lhe reconheciam, nunca arranjara noivo nem tempo para namorar. Era do género de considerar um desperdício de tempo ouvir música, ver teatro ou ler romances embora já tivesse ouvido ao mocho que quem lê romances vive mais; não compreendia, censurava até, por vezes, as que perdiam tempo no cabeleireiro e gastavam dinheiro em cremes de beleza e outros cosméticos.
Certa vez, travara conhecimento com uma cigarra muito simpática e comunicativa que tinha vindo morar para a vizinhança do formigueiro. Ao contrário da formiga, a cigarra vive com alegria e, sempre de bom humor, sabe tirar partido das coisas boas da vida. Pertence a uma família de criaturas que se dedica às artes, especificamente a música. A cigarra aproveita o calor do dia para cantar, insufla a pele do abdómen que ressoa como um tambor, e só pára ao entardecer. A cigarra entoava o seu cântico de louvor do Sol e à formiga este cantar dava-lhe alento e companhia, de tal forma que lhe parecia despender menos esforço e poupar energia. Se a cigarra, em alguma manhã mais nevoenta se ficava amodorrada ao sono, ou se se demorava um pouco mais na toilette matinal, logo a formiga estranhava e, sem se dar conta, entristecia. Claro que a formiga não se apercebia da causa da mudança de humor, e porque é que os fardos que acartava lhe pareciam menores mas muito mais pesados e fastidiosos os dias. Tinha preconceitos, adquiridos no tempo da escola, com o mestre La Fontaine. É verdade que o mestre, já com muita idade, tinha conceitos arcaicos e já desactualizados, que os trovadores e outros pequenos e médios artistas de music-hall não lhe perdoavam, mas a formiga não tivera outra escola, para além da mais árdua escola do trabalho.
Até que um dia a cigarra ficou afónica, isto porque um desarranjo intestinal, provocado pela ingestão de folhas quentes, a impedia de utilizar o seu instrumento musical. Aí, a formiga sentiu a sua falta e o alento que lhe proporcionava o cantar da cigarra. A dúvida entrou então no seu espírito e pensava: será que tenho andado enganada toda a vida? Afinal as cigarras também trabalhavam? E para os outros, com abnegação e generosidade? Foi infatigável, a formiga, no apoio à cigarra. Arranjava tempo para lhe levar uns caldinhos deveras reconfortantes e nunca a comidinha faltou à cabeceira da enferma.
Desde então, não consta que nenhuma cigarra tenha ficado desamparada no Inverno, nem na velhice. No entendimento da harmonia desta verdade universal, Formigas e Cigarras foram felizes para sempre.

Hipólito Clemente

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