sexta-feira, 27 de junho de 2008

Miguilim - João Guimarães Rosa

Miguilim é um personagem de Guimarães Rosa, e é um personagem de todos nós. Através do olhar lúdico de uma criança de oito anos, Guimarães vai tecendo a poesia da infância, um lugar onde um dia fomos inocentes, aprendendo sem entender as maldades dos adultos, as intrigas familiares, as brigas entre irmãos, as raivas, e também o carinho da mãe, a autoridade do pai, a amizade fraterna, as histórias que os adultos contam, os saberes, as crenças, o bonito que há em tudo que aprendemos de novo, e o sentido ainda não apreensível que as coisas todas parecem ter.

Também é a história do sertão visto por um menino, um sertão que no olhar literário de Guimaraens se confunde com a própria infância. A linguagem do escritor, abusando do falar coloquial do sertanejo, misturado a uma quase imperceptível erudição, criando neologismos, afrontando a sintaxe, para ir direto ao sentimento, cria uma atmosfera onde poesia e prosa são a mesma coisa.


“Miguilim pegava o tabuleirinho vazio, tomava a benção a Pai, vinha voltando. Chegasse em casa, uma estória ao Dito ele contava, mas estória toda nova, dele só, inventada de juízo: a nhá nhambuzinha, que tinha feito uma roça, depois vinha colher em sua roça, a Nhá Nhambuzinha, que era uma vez! Essas assim, uma estória — não podia? Podia, sim! — pensava em seo Aristeu... Sempre pensava em seo Aristeu — então vinha idéia de vontade de poder saber fazer uma estória, muitas, ele tinha! Nem não devia de ter medo de atravessar o mato outra vez, era só um matinho bobo, matinho pequeno trem-atoa. Mas ele estava nervoso, transparecia que tinha uma coisa, alguém, escondido por algum, mais esperando que ele passasse, uma pessoa? E era! Um vulto, um homem, saía de detrás do jacarandá-tã — sobrevinha para riba dele Miguilim

— e era Tio Terez!...

Miguilim não progredia de formar palavra, mas Tio Terez o abraçava, decidido carinhoso. — “Tio Terez, eu não vou morrer mais!” — Miguilim então também desexclamava, era que nem numa porção de anos ele não tivesse falado.

— “De certo que você não vai morrer, Miguilim, em de ouros! Te tive sempre meu amigo? Conta a notícia de todos de casa: a Mãe como é que vai passando?”

E Miguilim tudo falava, mas Tio Terez estava de pressa muito apurado, vez em quando punha a cabeça para escutar. Miguilim sabia que Tio Terez estava com medo de Pai. — “Escuta, Miguilim, você alembra um dia a gente jurou ser amigos, de lei, leal, amigos de verdade? Eu tenho uma confiança em você...” — e Tio Terez pegou o queixo de Miguilim, endireitando a cara dele para se olharem. — “Você vai, Miguilim , você leva, entrega isto aqui à Mãe, bem escondido, você agarante?! Diz que ela pode dar a resposta a você, que mais amanhã estou aqui, te espero...” Miguilim nem paz, nem pôde, perguntou nada, nem teve tempo, Tio Terez foi falando e exaparecendo nas árvores. Miguilim sumiu o bilhete na algibeira, saiu quase corre-corre, o quanto podia, não queria afrouxar idéia naquilo, só chegar em casa, descansar, beber água, estar já faz-tempo longe dali, de lá do mato.

Miguilim, menino, credo que sucedeu? Que que está com a cara em ar?

— Mesmo nada não, Mãe. Gostei de ir na roça, demais. Pai comeu a comida...

O bilhete estava dobrado, na algibeira. O coração de Miguilim solava que rebatia. De cada vez que ele pensava, recomeçava aquela dúvida na respiração, e era como estivesse sem tempo. — “Miguilim está escondendo alguma arte que fez!” “— Foi não, Vovó Izidra...” “— Dito, quê que foi que o Miguilim arrumou?!” “— Nada não, Vovó Izidra. Só que teve de passar em matos, ficou com medo do capeta...”

João Guimarães Rosa
Campo Geral
em Corpo de Baile I
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.

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