quinta-feira, 8 de maio de 2008

temos...


Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.

Não temos amado, acima de todas as coisas.

Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos.

Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.

Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.

Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.

Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.

Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.

Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.

Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.

Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.

Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.

Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.

Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.

Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.

Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.

Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.

Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.

Temos chamado de fraqueza a nossa candura.

Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.

E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

CLARICE LISPECTOR

Nenhum comentário: